A cidade sinistra

 

Beco do Sinistro

Dentro da carruagem da jornada, o garoto Ahlex se livrava da capa de chuva molhada. O grupo havia escoltado ele fora das suspeitas. Há quase uma hora, o menino com aparência de seis anos, mas com a vontade de um paladino experiente, foi encontrado amarrado numa cama dentro de uma das casas quebradas de Beco do Sinistro. Seu pai (ou melhor, o pai de Ahlex) era um sujeito fajuto, ladrão, trapaceiro e bêbado, de modo que não demorou para que a presença divina que morava em Ahlex percebesse que igual a todos os demais habitantes da cidade, ele estava submetido a um encanto corrupto que tornava o lugar perigoso para estrangeiros.

Os habitantes urinavam e defecavam fora de seus banheiros, as comichões eram coçadas até borbulhar e virarem feridas permanentes, a varíola provocava mortes ou perda permanente de mãos e pés. Beco do Distrito era um lugar entregue aos ratos e baratas e o povo acreditava estar vivendo conforme bem queriam. A presença que incorporava Ahlex sabia que Beco do Sinistro era apenas um antro de mazelas que servia para alimentar algum demônio ou coisa pior.

− ... este garoto se chama Ahlex. Ele é um fio de esperança para esta cidade. Eu sou Kyle Bek, um paladino de Khalmyr ou, melhor dizendo, eu fui, no passado. Eu e Helena nos conhecemos antes. Fui um campeão do deus da justiça e em minha tumba, no vilarejo de Bek’ground, jazia um artefato que cedi quando ela e seus amigos me visitaram certa vez. Na época, eu tive permissão das divindades celestiais, hoje em dia, tento não questionar essa permissão agora que sei em que mãos o dado selvagem está – o garoto tentava explicar, seu tom de voz maduro se contrastava com o olhar penetrante e inocente de garoto.

− O que é ou o que foi esse dado selvagem? – Meia-noite esta curioso, afinal de contas, há meses ele sofrera uma consequência invocada pela simples jogada de um dado nas ruínas de Imrador.

− O dado selvagem não nos importa mais. Não sei por que os deuses permitiram, mas atualmente, está nas mãos de Dee, o sumo-sacerdote de Nimb. Nas ruínas onde fomos traídos pelo Cárcere e a morte encontrou Mairon − Helena explicou

− Foi por causa dessa coisa... de um dado (!) Que fomos parar em Al-gazaha? – Meia-noite se referia ao plano do deus do caos, de Nimb, onde nada é o que parece e as coisas sempre estão em eterna mudança. Dia sim, dia não, o excêntrico inquisidor ainda se recorda de breves cenas que ocorreram com ele no plano de Nimb e isso feriu sua mente permanentemente. Até que ponto essa injúria iria lhe causar confusão, entretanto, ainda é uma incógnita.

 − Não foi só você quem deu um passo em Al-gazaha, Meia-noite, todos nós visitamos o lugar, mas parece que a sua mente foi a única que sobrou algum vestígio de lembrança. O único de nós que não foi ao plano de Nimb foi o Bixano, eu o vi fugindo, de modo que todo o resto de nós ainda não sabe que surpresas aguardam meramente por ter invadido o plano do deus louco – explicou Raijin, reconhecendo que aquela história ainda não havia sido encerrada.

− Pensar no dado selvagem não vem a calhar agora – explicou Ahlex – os anjos superiores me mandaram até esta cidade para salvá-la e eu, de bom grado, aceitei a missão, entretanto, não sabia que meu espírito seria reencarnado no corpo de um garoto inofensivo, que detesta empunhar mesmo um galho como arma.

− Berith me mandou aqui para ajudá-lo – afirmou Helena – embora não tenha me falado diretamente, essa missão está mais do que clara.

− ... e quem é esse Berith? – perguntou Raijin.

− Um elandrin ou, melhor dizendo, um celestial vindo de Odisseia, o mundo de Valkaria. Enquanto vocês viajavam, eu aguardava seu recrutamento. Berith me deu a palavra de que eu conseguiria tocar a magia de minha deusa ao final de seu treinamento e, aparentemente, lidar com isso parece fazer parte deste – Helena explicou.

− Isso explica como você chegou aqui tão rápido – Meia-noite continuou.

− Voltando ao assunto da “cidade amaldiçoada”, então, de que forma poderíamos ajudar? Tentamos obter informações sobre qualquer coisa naquela taverna bolorenta, Meia-noite foi um tanto persuasivo, mesmo assim a coisa desandou... – Helena questionou enquanto observava da janela da carruagem uma cidade escura com uma neblina pertinente que abafava tudo e trazia mosquitos.

− Eu estudei sobre demônios para saber o suficiente. Os olhos daquele taverneiro estavam evasivos e, apesar de eu ter coagido ele, sua íris se concentrava em nada particular. Sinal de alguém que confronta algum encantamento. Talvez, parte desta cidade não carregue a culpa de deixá-la tão suja e abandonada – explicou Meia-noite, sua voz transbordando conhecimento.

− Parece ser algum tipo de demônio da ganância, preguiça ou luxúria. Uma súcubo, talvez – deduziu Ahlex.

− Se for uma súcubo, teremos muito trabalho até encontrá-la. É um demônio ardiloso, provavelmente já sabe que estamos na cidade – explicou Raijin consultando sua biblioteca mental – você, Kyle Bek, ainda mantém seus poderes de paladino, mesmo estando no corpo de alguém tão frágil?

− A ligação que tenho com minha antiga consciência é tênue. Eu mal consigo diferenciar o fedor do pântano que nos acerca e o cheiro do mal acontecendo, mas, talvez, quanto mais perto eu estiver do âmago da coisa, mais chances terei de identificar – espiando pela janela da carruagem, ele notou que o único estabelecimento com luz de tochas acesas era a Taverna do Vômito Poçante – ali parece ser um bom lugar para começar.

− Eu posso tentar fazer com que você passe despercebidamente. Talvez, lhe sujando um pouco e cortando teus cabelos, tenhamos um disfarce suficiente. O povo desta cidade não me parece tão atento e ainda menos interessado numa criança fugitiva – Meia-noite se prontificava ali a proteger o garoto – eu espero que essa situação se resolva esta noite ou as condições irão piorar.

− Como está a ferida? – Raijin pergunta ao desconfiado Meia-noite.

− Ela não dói mais como antes, embora consiga perceber que sua cicatrização há muito se atrasa. Temo por mim e por vocês caso essa maldição me aflija.

− Do que está falando? – perguntou Helena e Ahlex pareceu igualmente curioso.

− Semanas atrás fui mordido por uma fera. Um lobisomem. Desde então, conto os dias para a próxima lua cheia, para me certificar que a maldição não obteve êxito.

O grupo ficou em silêncio por um momento. Era muita coisa para processar:

− Quando será a próxima lua cheia? – perguntou Ahlex

Meia-noite olhou para o céu escuro, ausente de estrelas, suspirou e disse: − Amanhã.

[...]

− O que eu faço? – perguntou Bixano.

− Fica aqui e vigie a carruagem – mandou Raijin.

− Então, tá... é o jeito, né? – deu de bruços e se deitou embaixo do veículo. Logo estaria dormindo.

[...]

                As portas da Taverna do Vômito Poçante estavam sempre abertas, mas isso não significava dizer que o estabelecimento estava sempre convidativo. Os heróis tentaram acercar o vilarejo de Beco do Sinistro em busca do vestígio do mal, mas pouco tempo foi necessário para que percebessem que a taverna, lotada de maus elementos enfeitiçados, era a única que parecia feder em todos os aspectos.

Sentaram-se em uma mesa cercada de olhares duvidosos. Os habitantes do Beco do Distrito, em sua maioria formada de ladrões e valentões, sequer desejavam esconder a insatisfação de estarem dividindo a noite com estrangeiros. Alguma doença sobrenatural havia incutido aquele sentimento de rancor em suas mentes, mas não havia histórico na cidade de estrangeiros causando algum problema pelas redondezas. A maioria acreditava ter que expulsar estes, pois atrapalhariam o jeito legítimo que eles resolveram adotar para viver (além de estarem constantemente escondendo seus crimes).

− Eu preciso de algum tempo – informou Ahlex – em algum momento, seja que aura de maldade for, seu portador não conseguirá ocultá-la por muito tempo. Fiquem atentos!

E assim os heróis fizeram.

Meia-noite foi o primeiro a notar algo. Levou a mão à sua arma de fogo, um instrumento mecânico complexo que havia adquirido em uma de suas aventuras no passado e que acabara adotando como parte de seu estilo de luta. Raijin tentou acalmar seus ânimos:

− Diga-nos o que vê! – segurou delicadamente a mão firme do pistoleiro.

Meia-noite bufou – Perdemos uma chance! – seus dedos largando a arma de fogo.

− Do que se tratava? – perguntou Raijin.

− Suspeito que um imp, ou alguma coisa pior. Um diabretizinho ligeiro que está sussurrando no ouvido de algumas pessoas aqui...

− Diabretes realmente podem fazer um grande estrago na mente de suas vítimas se tiverem tempo – afirmou o mago – pode me dar mais detalhes?

− Não tenho muito mais a dizer, apenas mais uma coisa: ele parece acercar-se de... poeira – explicou Meia-noite em tom duvidoso.

− Não é um diabrete – intrometeu-se Helena.

− Como pode ter tanta certeza? – Raijin duvidou do súbito entendimento da clériga.

− É um mephit. Um mephit da poeira. Está me seguindo... já faz algum tempo.

− Como assim?

− Ele talvez nada tenha a ver com nosso caso, mas vou lhes contar (!) mais cedo falei sobre as missões que faço em nome de Berith Elarion, o eladrin de Odisseia... pois, bem... lidar com esse mephit foi a minha primeira tarefa. Precisava afugentá-lo da biblioteca dos halflings na Pequena Colina, próxima à Valkaria. De alguma forma, eu acho que consegui, mas a criaturinha ardilosa está no meu pé desde então...

− ... pois ele me parece que vai criar confusão. Noto que ele está sussurrando qualquer coisa no ouvido de um e de outro aqui. O povo desta cidade parece saber que ele existe, pois não vejo ninguém exasperado – Meia-noite argumentou ainda focando sua atenção.

− Ele disse que iria infernizar a minha vida, talvez esteja cumprindo o prometido – Helena se conformou.

Sem aviso prévio, Meia-noite não resistiu a se armar de seu bacamarte. Ergueu-se apontando o cano da arma de fogo em direção a um habitante cochichador próximo ao balcão. O movimento foi rompante, em instantes, toda a taverna estava num silêncio perturbador:

− Tá pensando o quê, rapaz? Não estamos brincando aqui! O que tanto você cochicha aí? – mais cedo, Meia-noite havia intimidado o taverneiro e foi de tal modo tão bem-sucedido, que o povo de Beco do Sinistro havia se convencido a articular uma vingança.

A iniciativa começou com o taverneiro:

− Já chega, forasteiro! Está mais do que na hora de você entender que nessa terra quem manda é o povo! – o taverneiro gigante, careca e barbudo estalou seus dedos protegidos por uma adaga de soco, parecia preparado para peleja.

O silêncio se tornou uma cacofonia ímpar de facas e canecas quebradas sendo desembainhadas. A confusão havia começado.

[...]

− Conseguiu sentir algo, Ahlex? – Raijin perguntou.

− Consigo sentir todo o ódio das pessoas aqui. Eles querem ver sangue!

Uma caneca quebrada foi lançada contra o garoto. Helena interpôs-se com o escudo e o líquido mal-cheiroso encharcou o símbolo desenhado na fronte.

− Levem o garoto para fora da taverna! SAIAM! SAIAM RÁPIDO! – Helena sacou um bastão simples, não queria matar ninguém, havia separado a arma para momentos em que a letalidade não fosse a primeira opção.

Meia-Noite segurou no braço de Ahlex e o arrastou para fora da taverna. Raijin decidiu se manter fora da luta.

Helena brande seu escudo e canaliza a energia de sua divindade. Valkaria lhe concedeu a bênção e os seis laços púrpuras e brilhantes se entrelaçaram ao seu redor:

− Não podem passar pelo escudo da minha fé! Enxerguem a situação em que vocês se encontram ou  terei que extinguir suas consciências com violência! – gritou abruptamente, mas isso não fez com que bêbados e valentões parassem.

O brilho intenso do escudo da deusa explodiu e defletiu uma dezena de aldeões furiosos. Eles se avolumaram ao seu redor entre pancadas e facadas, mas qualquer brutalidade insana era facilmente defendida pela vontade de Helena.

Do lado de fora, Meia-noite buscava distância de qualquer luta. Ahlex era apenas um menino, talvez uma única pedra fosse o suficiente para matá-lo. Raijin estava do outro lado da rua, ele viu um fugitivo espreitando na escuridão.

− Preciso da sua ajuda, Meia-noite! – gritou.

− Nem fudendo que eu vou aí! – pôs-se de frente à Ahlex – o menino tem que ficar seguro. Vou levá-lo à carruagem!

[...]

Cadeiras e mesas quebradas. Vidro estilhaçando. Gritos e xingamentos. Agora Beco do Sinistro era uma balbúrdia. Valentões contra o escudo sagrado de Valkaria.

Meia-noite arrastara Ahlex pelos becos escuros em direção à carruagem. Sua chegada súbita acordara Bixano que tirava um cochilo embaixo do veículo.

− Bixano! O que você está fazendo!? – o inquisidor estava exasperado.

Pego no susto, Bixano espichou-se e balbuciou qualquer coisa: − Tá tudo bem... Ninguém mexeu em nada aqui...

− Parece que não! – concordou Meia-noite enquanto procurava a chave da carruagem desesperadamente. Estava num de seus bolsos.

Destrancou a porta e jogou Ahlex para dentro do veículo, mal sabia que estava sendo indelicado e, também, não importava.

− Você fica aqui, garoto! Vou trancar a porta... você ficará seguro. Bixano cuidará da vigília.

Bixano não fazia muita questão de acompanhar o caso.

Ahlex acenou positivamente com a cabeça enquanto assustado e viu a escuridão de dentro da carruagem lhe acercar assim que a porta foi fechada num baque violento.

− Preciso retornar à taverna! Helena está sozinha... – explicou Meia-noite enquanto analisava quantas munições ainda lhe restava.

− Eu preciso ir!? – perguntou Bixano... e mais uma vez:

− Você fica aqui e toma de conta da carruagem. Não deixe ninguém entrar!

Bixano não questionou. Assentiu, apenas.

[...]

Taverna do Vômito Poçante
 Na taverna, um corpo voou longe. Foi empurrado pela confusão e arremessado para acima do balcão. Caiu inconsciente quase que imediatamente.

A Taverna do Vômito Poçante não era nada agradável, mas nela havia uma cozinha organizada, em contraste. Havia um cardápio, algo atípico de tavernas (mesmo em cidades grandes) e um tempero exótico fabricado por alguém que era notoriamente experiente.

Carlos Castilho há muito esperava por uma oportunidade para sair de lá. Ele não nascera em Beco do Sinistro, muito menos decidira trabalhar por lá em algum momento. Era uma vítima. 

Há cerca de duas semanas, Carlos, apesar de ter sido alertado por viajantes, chegou à Beco do Sinistro de carona com um halfling mascate. Em poucos momentos, percebera que aquela cidade estava entregue à infelicidade.

− Estrangeiros não são bem-vindos! – foi a primeira frase do taverneiro.

− Uma pena, meu senhor! Qual seria o seu nome? – perguntou educado.

O taverneiro meio-gigante olhou raivosamente para o bardo audacioso e escarrou para um lado da taverna – Trophegus.

− Muito bem, senhor Trophegus. Poderia me dizer por que esta cidade é tão rancorosa? Por acaso vocês têm algum líder?

A resposta não veio. Castilho, entretanto, não iria desistir tão fácil.

− Talvez uma música possa alegrar o seu dia, amigo! – sentou-se numa das cadeiras e dedilhou seu instrumento: um violão rústico, feito com a madeira de uma árvore dos bosques de Pondsmania, o reino das fadas, onde gente do tipo dele era muito frequente.

O taverneiro e os visitantes da taverna aguardaram a música encerrar atentos.

− Então, o que acharam? Esta canção é famosa em quatro reinos! É uma das muitas canções que contam a jornada do grande rei-imperador Thormy. Dizem que a última canção dessa jornada não pode ser tocada por um único bardo e sim, um trio. Apesar de Luigi, o sortudo, um dos nossos mais conceituados bardos, ter alcançado tal feito de forma solitária. O que me dizem?

− Eu acho que música é coisa para otário e você está me fazendo perder tempo! – Trophegus vociferou.

A resposta pegou Carlos desprevenido. Nunca havia encontrado um povo tão difícil de lidar. Provocar um sorriso sincero ou um único agradecimento daquela gente passou a ser um objetivo pessoal.

− Entendo, entendo. Realmente, a arte não é para todos! ... mas, tem uma coisa que eu sei fazer que agradaria a qualquer um, se me permite dizer...

− Não estou interessado no seu charme, forasteiro – sorriu debochado e foi auxiliado pelas risadas maldosas de seus compatriotas.

− Não me referia a isto, senhor. Eu falo de comida! Vê esta mochila? Está cheia de temperos especiais que venho colecionando durante minhas andanças... talvez, eu possa fazer algo para os senhores...

O taverneiro olhou desconfiado: − Por que você faria isto?

− Talvez em troca de um pouco de aprovação, não me leve a mal. Não trabalho para isso, mas pressinto que esta cidade merece um alento. Então, pode me deixar ao menos tentar?

Trophegus consultou seus comparsas e assentiu.

Algumas horas depois um conjunto de pratos e bacias revelava uma massa polvilhada recheada com uma mistura doce chamativa.

− Apresento-lhes um red velvet profissional com... – Carlos parecia empolgado a contar a história daquela receita, mas foi interrompido.

− O que seria um “red velveti”? – perguntou um dos valentões da cidade.

− Um bolo, meu senhor. Uma massa feita com uma mistura de ovos, leite e açúcar. Bolo está entre uma das coisas favoritas da minha vida.

Por um momento houve um suspense. O taverneiro e os valentões se entreolharam, como se esperassem pela iniciativa do mais corajoso. Trophegus arrancou um pedaço do bolo desajeitadamente com a mão e colocou na boca... seus olhos brilharam em instantes e sua cara de satisfação encorajou o restante a tentar o mesmo.

Eles comeram todo o bolo de forma furiosa enquanto Carlos assistia eles destruírem sua obra prima. Pareciam com lobos devorando sua presa. No segundo final, Trophegus olhou para o bardo e perguntou:

− Então, você deseja conhecer nossa líder, certo?

[...]

                Meia-noite se esgueirava pelas ruelas vazias e escuras de Beco do Sinistro quando foi surpreendido por um cochicho de arrancar a alma do corpo:

− Aqui em cima da taverna, Meia-noite!

O inquisidor sacou seu bacamarte e apontou para o nada.

− Sou eu, Raijin! Estou invisível...

− O que está fazendo em cima da taverna, rato?

− Aquele sujeito que você primeiro ameaçou, eu o vi espreitando pelas sombras do próximo beco. Parecia dedicado a chegar em algum lugar, mas o perdi de vista.

− Eu vou dar o meu jeito de encontrá-lo – agachou-se enquanto sussurrava uma prece ao panteão. Um brilho tênue e esverdeado se espalhou pelas suas costas como um manto cintilante e espectral e seus olhos viraram prata – consigo ver seus passos. Seguirei.

Meia-noite apressou o passo, guiado pelo espírito de um caçador atravessou as ruelas à passo rápido e chegou até a rua principal onde pôde ver as demarcações do rastro brilharem em frente à sua vista. Teria que atravessar a rua principal. Encostou-se na murada de uma casa e verificou suas munições mais uma vez. Lembrou-se que dali há um dia, estaria lutando contra a besta. Contra uma maldição voraz que talvez nunca encontrasse uma cura, sentiu uma vontade repentina de procurar pela lua e fez isso sem resistências.

Ao olhar para cima se deparou com algo inesperado: o corpo de Mairon estava estendido como uma bandeira no meio da cidade. Um cadáver em decomposição hasteado como um pináculo de assombro repentino no meio de uma cidade amaldiçoada.

− Estou vendo coisas... – balbuciou.

− Se está tendo alucinações, somos dois – acrescentou Raijin. Meia-noite quase havia esquecido de que o mago analisava os arredores, ainda invisível.

− Não vou deixá-lo assim – mirou no tendão da haste de madeira que segurava o cadáver e antes que alguém pudesse impedi-lo, atirou. O bacamarte fez bem o serviço e logo o corpo do aliado estava em seus braços – por mais bizarro que isso soe agora, mas o corpo de Mairon não deveria estar dentro da nossa jaula, lá na carruagem?

− Aquele maldito gato devia estar dormindo – rosnou Raijin – Deve estar dormindo ainda agora!

− Mas, quem o tiraria de lá? E como? E com que propósito? – a mente do inquisidor, como de praxe, ficou encharcada de perguntas.

A resposta não estava distante.

No meio da escuridão, a velha e conhecida chama verde brotava das mãos da inimiga.

Meia-noite não podia acreditar, mas sabia que era possível. Segurou sua arma de fogo firme e sussurrou:

− Delilah.

                A cidade inteira, metade adormecida, acordara neste momento. Os gritos de mulheres e crianças trancafiadas em suas casas soaram de forma fantasmagórica e espalharam terror pelas ruas da cidade.

− A gente não está preparado para isso – sussurrou Raijin.

[...]

                Os gritos ecoaram pela cidade. Mesmo abafados por portas e janelas fechadas, a agonia dos habitantes por terem suas vidas arrancadas era alta o suficiente. Nas finas frestas abaixo das portas das casas, um lodaçal rubro brotava borbulhante, derramados das gargantas de vítimas desavisadas.

Helena espancou o que achava ser o último dos aldeões e saiu atônita da taverna (mal deu atenção à canção inspiradora que soava nos fundos). O escudo da deusa cedeu e os laços de proteção se desataram. Ela viu Meia-noite junto ao corpo retorcido de Mairon, viu também a chama verde brotar da escuridão como fogo fátuo. Delilah estava de volta!

Apesar de ter se passado meses desde a última vez que a vira, a clériga de Valkaria ainda não havia lidado bem com os próprios sentimentos. Ainda tinha dúvida se Delilah Maleficent era a real articuladora do grupo denominado o Cárcere (um grupo de personagens que possui a pecaminosa missão de manter Valkaria encarcerada) ou se ela era apenas mais um peão nas mãos de Suzannah, a penúltima lágrima de Valkaria. A última vez que a vira, Mairon havia sido carbonizado bem na sua frente, por uma magia que transcendia os poderes de um clérigo comum.

Suzannah havia dado a ela uma escolha: fugir do próprio destino ou encará-lo e lapidá-lo para que um dia este fosse roubado. Helena não sabia muito bem o que esperar disso, mas contava com sua melhor estratégia: a impulsividade. Dessa vez, não somente os laços protetores foram invocados, como também sua fúria divina. Seu corpo inteiro brilhou na cor púrpura enquanto os seis laços de Valkaria contornavam seu corpo como tatuagens brilhantes, escaldando sua pele com magia divina. Seus olhos eram lanternas na escuridão e agora, em punhos, a maça estrela flamejava ardente.

Delilah seria sua vítima naquela noite... a não ser que...

[...]

                Carlos Castilho levou as mãos aos ouvidos no momento dos gritos de agonia. Ainda estava acorrentado. Ainda era um prisioneiro. Os gritos se foram e o silêncio repentino ficou. O bardo havia tentado tocar o violão para chamar a atenção dos forasteiros, desejara gritar por ajuda, mas tinha receio do que poderia acontecer. Passara duas semanas em cárcere e este pouco tempo já havia sido suficiente para ver e ouvir atrocidades (como um episódio que um pai jogara o próprio filho no poço para que morresse afogado, como punição por desobediência). Não tinha garantias que os forasteiros seriam aliados, mas sabia que um bom coração seria atraído pela boa música.

Por sorte, sua teoria estava correta.

[...]

                Uma figura encapuzada estava oculta na escuridão da taverna. Ela assistira Helena contra todos e previra não precisar auxiliar. Esta se manteria assim, não fosse a canção entoada na cozinha da Taverna do Vômito Poçante, bela o suficiente para chamar atenção, inspiradora o suficiente para gerar clemência.

Carlos Castilho esperava pela ajuda. Viu a figura encapuzada aparecer, tenebrosa como a noite.

− Diga-me, pelo amor dos deuses, que você é um amigo! – suplicou o bardo.

O sujeito encerrou o passo antes de chegar perto demais:

− Por que está aqui? – era claramente uma voz feminina e soturna. Carlos gostou disso.

− Eu sou um prisioneiro. Meu crime: ser bom demais na cozinha!

Carlos viu duas lâminas deslizarem para as mãos da figura, afiadas e letais. Seria ele, agora, a vítima de uma assassina cruel?

Uma sombra gigante se projetou ameaçadoramente nas costas da assassina. Carlos pôde ver o insistente Trophegus, dono da taverna, já tonto devido a uma forte pancada na cabeça, se aproximar.

− Acho que você vai ter problemas, amiga – avisou.

A assassina se virou rapidamente, apenas a ponto de se desviar de um soco potente. Girou o corpo num movimento cálido de esquiva, então, se esquivou do segundo. As mãos da assassina seguraram firme a cimitarra e a espada curta, suas lâminas letais. Ela precisava lutar ou fugir. Escolheu a primeira opção.

Observou dois pontos de impulso, um balcão e uma parede, e no instante seguinte, usou ambos para descer sobre o inimigo como um redemoinho. O movimento parecia o certo, exatamente de acordo com o que ela planejara. Castilho abriu um sorriso involuntário ao ver o fluxo: − ... é uma dança! – e mesmo que os ataques não tenham sido bem-sucedidos, o bardo pronunciou esperançoso:

− Hora da canção do rei Thormy! – Carlos apanhou seu violão e seus dedos agiram de forma ágil, deslizando pelas cordas com a maestria de um bardo experiente. Cada dedilhar na nota mais aguda, acompanhando o desfecho de um movimento mortal...

                Mas, não era tão fácil para a assassina. Ela perdera seu nome e o seu hábito. Estava em Beco do Sinistro por um motivo, planejara encontrar seu destino, mas não sabia como iria encará-lo dessa vez. A canção, talvez, a ajudasse a lembrar...

[...]

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