A cidade sinistra - Parte 03
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Delilah Maleficent |
A calamidade vociferou enquanto investia contra Helena. Na parte inferior, seus membros eram os braços atrofiados de Jamie, presos às espadas curtas molhadas de sangue e magia negra. Na parte superior, um par de garras do tamanho das asas de um grifo, de onde unhas sangrentas protuberavam. A criatura ziguezagueou deixando um rastro profundo na terra úmida de Beco do Sinistro e saltou sobre Helena caindo pesadamente enquanto as asas de carne abocanhavam.
Os seis laços de energia violeta contornaram o corpo de Helena como uma concha e afastaram as garras de Satan, enquanto o escudo divino a defendia dos ataques letais de Jamie. A primeira investida foi suficiente para Helena sentir o poder da criatura. As garras de carne prendiam e mastigavam o invólucro divino.
− A CRIATURA É FORTE DEMAIS! EU PRECISO DA AJUDA DO RESTANTE! – no calor da batalha, Helena tinha seus olhos pulsando energia brilhante e sua voz ecoava como a de um anjo. Ela olhou para Meia-Noite e notou que Delilah interceptava seu caminho... mas ela não podia virar as costas para o inimigo.
− Saia do meu caminho Delilah! – Meia-noite colocou o corpo de Mairon no chão e agora tinha seu bacamarte apontado para a inimiga.
− Você não acha mesmo que essa coisa vai me intimidar, não é, Meia-noite, filho desgarrado dos Gabrak – uma chama esverdeada impregnava uma das mãos de Delilah com magia necromântica ameaçadora que emitia um tipo de gás esverdeado e doentio com brilho tênue – saia da minha frente e deixe de lado sua teimosia, volte para o leito das suas terras desgovernadas... ou sofra as consequências de me desafiar e ter a alma devorada pelos mesmos demônios que devoraram seu pai.
Meia-Noite disparou. A forte rajada estourou como um trovão, mas atingiu a barreira fantasmagórica que protegia a magia. “Eu devia saber... um mago nunca se aproxima do combate sem defesas”, ele pensou – Qual a sua intenção com este corpo, Maleficent!?
− A esta altura, você já deve saber que ele é minha matéria-prima – respondeu Delilah, austera.
− Por que justamente o corpo de Mairon? – o inquisidor queria respostas.
− Nem mesmo eu sei quais são os caprichos dos lordes do abismo, bárbaro... não estou aqui para contrariar e você sairá do meu caminho de qualquer jeito! – balbuciou algumas palavras num idioma gutural antigo e soprou o medo em Meia-Noite.
O inquisidor tentou não respirar a magia, mas ela lhe entrou pelos poros. Era inevitável. Sua mente voltou aos tempos de criança, onde sua tribo foi invadida, arrancada do lar e obrigada a marchar para morte nos vales albinos, na fronteira com Postmouth. Recordou-se das pessoas pintadas de branco com gengivas sangrentas e da imensa pirâmide fervente, cujo sol castigava imponente. Lembrou-se dos rostos dos feiticeiros, cravados de agulhas e argolas feitas de osso, pintados de vermelho e azul. Lembrou-se da foice afiada que ainda pingava o sangue de seu pai, momentos antes deste ter a cabeça cortada e esta rolar escadaria abaixo e pousar sobre seus pés ainda consciente, apenas para dizer “Fuja, filho... Não há esperanças!”
O medo contaminou Meia-Noite como uma doença. Agora ele era uma criança e as lágrimas lhe caíam dos olhos. Tinha que fugir dali e faria... não fosse a canção que lhe despertou os sentidos.
[...]
− Ainda tenho dúvidas de quem aqui é amigo, mas aquela coisa bizarra e a necromante parecem bem suspeitos que não são – comunicou Carlos à Nikaia que estava atenta ao combate – você vai ficar aí parada?
− Em minha terra há um ditado: “Diante de uma larga frente de batalha, procure o ponto mais fraco e, ali, ataque com sua maior força” – explicou a assassina.
− Hey! Conheço esse ditado... não me diga que você é de Yuden!? – Carlos havia ouvido a mesma citação de um chantre de guerra numa taverna em Zakharov, certa vez.
Nikaia assentiu silenciosa.
O reino de Yuden é conhecido por ser “o exército com uma nação”. Os humanos de lá são a supremacia, seu povo é xenófobo extremista. Acreditam ter o exército mais poderoso do mundo (o que pode ser verdade) e seus integrantes são vítimas de um treinamento obrigatório que tem como missão adestrar a mente para que ela se torne resistente às próprias emoções. Ser de Yuden poderia significar muita coisa, mas uma destas era óbvia: um assassino de lá era claramente eficiente.
− Vamos proteger aquele sujeito com o cadáver – decidiu a assassina – em primeiro momento, vou emboscar a necromante – ela olha para o bardo incisiva e ele, engolindo o seco, concorda e se vira em direção ao combate.
− Já que estávamos falando em Yuden, a “Marcha para Guerra”, de Casuarius Thelian, é uma boa pedida! –
O som das cordas soou mais agressivo e retumbou no coração de Meia-Noite. O medo do inquisidor se esvaiu repentinamente.
− Que som é esse? – resmungou Delilah e uma sombra misteriosa saltou sobre suas costas. Uma lâmina rodopiante que atingiu o espectro de energia que protegia seu corpo. Nikaia havia agido!
“Droga! ...eu deveria ter sido mais efetiva”, pensou a assassina. Delilah não previra intromissão no combate e agora parecia cercada. Era perigoso ficar tão próximo ao inimigo...
[...]
− Se você quer o poder, terá que aceitar o que nossa linhagem aceita desde o princípio – rosnou Alister Maleficent, pai de Delilah, quando ela ainda era uma garotinha. Pintaram seu corpo com a cal e o sangue do último sacrifício. Isso significa que uma crosta pastosa de coloração rubra lhe cobria o corpo e rastros de lágrimas salgadas tingiam seu rosto – porque continua chorando, Delilah? Livre-se dessa angústia. Isso não trará bom augúrio para a família.
A jovem necromante tinha mais medo do próprio pai do que da magia negra que praticava, porém, naquele dia, tomou coragem para questionar uma autoridade – e se... e se eu não quiser, pai? – queria que a voz tivesse soado mais decisiva, mas houve apenas um sussurro trêmulo.
Seu pai se aproximou, abaixou-se à altura do rosto da menina, seguro-lhe o queixo e mostrou a gigantesca pirâmide construída pelo sacrifício dos escravos – então, filha, nós a entregaremos para eles – Delilah notara as figuras imundas moldadas em adornos nos degraus de cada eixo da pirâmide. Eram demônios e diabos que nem mesmo ela sabia o nome – há uma troca de favores por gerações e uma rebeldia será insuficiente para encerrá-la.
A necromante cerrou os punhos que há pouco havia recolhido as cabeças decepadas após o ritual. Não tinha o que fazer.
[...]
− Não importa quem seja você, sombra! – Delilah respondeu ao ataque de Nikaia – eu triunfarei nesta data, em nome da minha família! – regurgitou sua feitiçaria medonha e seus olhos brilharam num tom verde pálido, as vozes de outro mundo soaram entre seus lábios e engoliram a canção inspiradora de Carlos Castilho.
O medo contaminou Meia-Noite novamente. O coração palpitou forte, chamando-o para longe. O corpo de Mairon era pesado demais. A mente do inquisidor estava infectada pela magia necromântica e ele não teve outra escolha a não ser fugir ou aquilo o consumiria.
[...]
Helena brandiu a maça-estrela e chamas irromperam da extremidade letal. Mal fizera isso e a calamidade voltou a atacar. As lâminas de Jamie descreviam ataques cada vez mais certeiros, mas tinham uma missão maior do que simplesmente acertar. Ele precisava abrir brechas para as garras de Satan, aquelas fariam o real estrago, mutilariam o corpo da vítima e fariam ela sangrar aos borbotões.
A maça flamejante atingiu uma das garras e o barulho da carne queimando precedeu o mal cheiro. “Eu não vou aguentar por muito mais tempo. Os laços divinos não são eternos... onde está Raijin, onde está o Bixano? Eu... eu preciso de ajuda! ...Eu... eu mereço essa ajuda? Eles ainda estão me punindo pela morte de Mairon? ... eu realmente desejo que ele retorne?”
As garras sangrentas de Satan finalmente romperam os laços divinos da clériga de Valkaria. A violência e selvageria haviam incutido a insegurança na vontade de Helena. Satan sabia que era apenas questão de tempo. Helena defendeu-se da primeira garra e foi atingida pela segunda em cheio, cortou a tez, o pescoço, o ombro, o seio e o abdômen profundamente. A clériga sentiu o sangue quente brotar e derramar-se pelo interior de sua armadura, seu fluxo sanguíneo não pararia de jorrar, ela iria morrer sem alcançar os segredos da magia divina.
Jamie enterrou as duas lâminas curtas nos flancos de Helena e ela sentiu o sangue entrar em erupção, alcançar-lhe a garganta, quando um filete rubro caiu pelos seus lábios e os seus olhos tremiam, lutando contra a inconsciência. Os laços de Valkaria foram rasgados, o escudo caiu no chão. Helena olhou para o inimigo. Satan gargalhou com seus dentes de demônio e lambeu o sangue da clériga que ainda escorria por suas mãos.
Titubeou para os dois lados e caiu no chão. Não havia aliados próximos... apenas desconhecidos.
[...]
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