A Cidade Sinistra - Parte 02
No passado, Nikaia fizera parte da Guilda da Calamidade, uma organização que nasceu e adotou um posto invejável nas zonas urbanas do reino de Yuden. Liderada por um nobre chamado Ikarus Leblanc II, a sociedade de assassinos ganhou renome após desvendar e eliminar um inimigo da coroa de Yuden (um grupo de pacifistas das terras de Nova Ghondriann) e foi recompensada com visibilidade que é praticamente tudo no reino da supremacia humana.
Cedo, Nikaia aprendeu a lidar com sua vida como o povo de Yuden costuma lidar: intriga política e planejamento de guerras para domínio total. Ela nunca chegou a se engajar com a alta elite, pois havia sido adestrada para servir e concluir missões sem pestanejar, até que seu estilo de vida foi amplamente influenciado por Jamie, um dos membros de sua equipe, um jovem com opinião própria, embora um tanto não resoluto.
Sem querer, Jamie inspirava Nikaia a pensar no que ela mesmo acreditava. Enquanto a Guilda da Calamidade planejava grandes intrusões no jogo político do reino de Deheon, Jamie, que adotara a sobrenome da própria guilda, pensava em dinheiro e luxo:
− De que adianta uma vida de guerras, se não aproveitarmos os intervalos? – era seu lema e, aos poucos, o jeito largado do ladino conquistou o sorriso de Nikaia. Os dias se passavam com a certeza de um novo brilho a cada pausa da intensa jornada de risco que a Guilda da Calamidade oferecia aos seus membros, até que, enfim, um episódio fatídico virou o jogo de forma impensável.
Uma traição do próprio fundador da organização transformou todos os membros da Guilda da Calamidade em vítimas de uma oposição traidora. Assassino por assassino foi caçado e eliminado sem que ao menos tivessem noção da causa. Outras três guildas foram as responsáveis por isso (Guilda da Lâmina de Sangue, os Chantres da Nota Cortante e os Capuzes afiados) e chegaram a fazer aliança com um grupo estrangeiro (a família Maleficent) afim de concluir o objetivo de matança.
Na fronteira entre Yuden e Zakharov, Nikaia e Jamie foram confrontados por uma personagem importante na futura lista de vingança da assassina. Delilah Maleficent, filha de uma família de pactuantes diabólicos da União Púrpura, invocara um kyton, demônio das correntes, para persegui-los. Nikaia foi ferida gravemente e abandonada sangrando e febril. Ela assistiu Jamie Calamidade ceder a um pacto arquitetado por Delilah e virar as costas a ela e a guilda.
Nikaia morreria não fosse a ajuda de Liticia Calvarius, uma clériga de Marah. Liticia cuidou de seus ferimentos e trouxe à assassina um período de paz e bondade, sem julgamentos. A clériga até que tentou expurgar o sentimento de vingança em Nikaia, mas, a lista de retaliação da assassina apenas confortava seus dias.
Nikaia se recorda do dia em que se despedira de Liticia com um forte abraço (um gesto bastante atípico para ela) e a confortou dizendo que os deuses jamais concederiam o sentimento de paz a ela enquanto alguns indivíduos não alcançassem a morte.
Foi com esse objetivo que a assassina seguiu o rastro de Jamie até Beco do Sinistro e agora... estava prestes a ter um reencontro.
[...]
[...] ...não era tão fácil para a assassina. Ela perdera seu nome e o seu hábito. Estava em Beco do Sinistro por um motivo, planejara encontrar seu destino, mas não sabia como iria encará-lo dessa vez... [...]
A canção de Carlos Castilho proporcionou lembranças que a própria Nikaia havia esquecido. Bastou um soco no rosto e a melodia do bardo para que os antigos passos da dança fatal voltassem à sua mente. Um movimento rápido e a primeira esquiva liberou a brecha que a assassina queria. Ela rasgou a carne embaixo das vértebras com a cimitarra, guiou seus passos para o flanco do oponente e cravou a espada curta atrás de seu joelho. Ela previra o segundo ataque: uma cotovelada. Num giro, esquivou-se da pancada e retaliou com o sabre no rosto da vítima.
Trophegus caiu de joelhos, levou as mãos ao olho cortado e rilhou os dentes sangrentos. Mesmo sobre a desaprovação de Carlos, Nikaia executou friamente o oponente que faria o mesmo com ela.
− Não precisava chegar a isso – comentou Carlos Castilho.
− Um inimigo mortal só deixa de ser um perigo quando executado – respondeu friamente, cravando o sabre entre as correntes que aprisionavam o bardo e, num giro, rompeu o elo.
[...]
− Cuidado, Helena! – alertou Raijin, ainda invisível – há mais do que somente ela.
E havia.
O Cárcere não costuma agir sozinho. Jamie Calamidade e Satan, os inseparáveis comparsas, pareciam se ocultar na escuridão, quase como presenças fantasmagóricas. Os dois humanos eram excêntricos conhecidos do grupo.
Jamie era tudo o que se podia pensar de um ladino, carismático e ágil. Satan carregava dor e satisfação em seus olhos amarelos ao mesmo tempo.
− Preciso que vocês cuidem da clériga – sussurrou Delilah.
− Não é ela que Suzannah quer viva? – comentou Jamie.
− Eu tenho os meus meios de manter ela viva. Não economizem suas forças.
− Ouviu isso, Jamie? – zombou Satan, como uma sombra em suas costas. A cicatriz de relâmpago desenhada no rosto como ramificações de carne corrupta – hora de causar dor.
Jamie massageou as têmporas inconformado – Faz tempo que você queria isso, diabo – tirou o casaco e o jogou ao vento, mostrando o corpo esguio, tatuado com o símbolo da Guilda da Calamidade (o cetro da família Leblanc), em seguida, ajoelhou-se.
Satan esboçou o mais legítimo e sádico sorriso de dentes serrilhados e gargalhou como um filho das trevas – a hora chegou! – esfregou os dedos no rosto e rasgou a própria pele enquanto suas unhas afiadas desenhavam sua insanidade. Em seguida, mergulhou nas costas de Jamie Calamidade, rasgando a pele, separando a carne e fazendo sangrar aos borbotões.
Jamie ganiu de dor enquanto o comparsa se instalava medonho em seu corpo, dividindo o mesmo sangue e vontade. A transformação era bizarra. Helena, Meia-noite e Raijin puderam ouvir o estalo da coluna de Calamidade estalar enquanto suas vísceras abriam espaço para o parasita.
− Enfrentem a calamidade! – gritou Satan. Agora ele era um segundo tronco que brotava das costas de Jamie e possuía um par de garras descomunais que, quando estendidas, pareciam asas de carne desfiada.
− Uma abominação digna dos Maleficent – comentou Meia-noite, que já havia ouvido sobre a magia negra dos antepassados de Delilah – por alguma razão, eles querem o cadáver de Mairon.
− Não faz sentido! – discordou Raijin − suponho que foram eles que hastearam o corpo de Mairon no centro da cidade. Por que não o mantiveram próximo?
− Eu não tenho todas as respostas, Raijin – explicou Meia-noite – mas consigo reconhecer o desejo de meus inimigos quando o confronto. Mairon agora é matéria-prima para a feitiçaria de Delilah e temos que impedir isso!
− Não podemos enfrentar aquela coisa sem saber com o que estamos lidando. A profecia de Thyatis me leva a crer que Kyle Bek é a ajuda que precisamos! – idealizou Raijin.
− Eu o deixei trancado na carruagem. A chave está aqui, no meu casaco. Leve-a! – Meia-noite estendeu a chave para o invisível – Raijin? – tentou encontrar alguma pegada do rato, para então prever que provavelmente ele estaria voando – Os deuses nos protejam... não temos mais tempo – Raijin já havia escapado da luta, voando com a ajuda de seu guarda-chuva mágico... e ainda invisível.
[...]
− Leve o corpo de Mairon para longe! Eu seguro essa coisa! – gritou Helena, envolta pelos seis laços divinos.
Meia-noite podia questionar por que ele era sempre o que findava tendo que proteger alguém e assim ter que se distanciar das lutas, mas raciocinou que, naquele momento, o mais saudável era mesmo ficar distante. Agarrou o cadáver nos braços, colocou sobre o ombro e começou a fuga.
Aconteceu exatamente o que ele previra: enquanto a calamidade investia contra Helena, Delilah veio ao seu encontro. Um pensamento rápido passou pela mente de Meia-noite: se hoje fosse lua cheia, talvez ele estivesse mais seguro.
[...]
Nikaia e Carlos saíram da Taverna do Vômito Poçante direto para a cobertura que o poço no centro da cidade oferecia. Carlos não podia fazer nada além de confiar em sua libertadora. Ambos notaram o episódio de transformação da calamidade e a assassina reconheceu uma das vítimas de sua lista de vingança.
− Jamie – ela sussurrou e suas mãos apertaram o cabo de suas lâminas.
− Uma decepção do passado? – perguntou Castilho – Acho que essa não é uma boa hora para lavar a roupa suja.
− Não posso deixá-lo escapar dessa vez. Não partirei antes de concretizar minha vingança – respondeu Nikaia, resoluta.
O bardo olhou para o escuro da noite distante e previra que aquele era o melhor momento para uma fuga. Deu de ombros, segurou o violão:
− Uma musiquinha para acompanhar nossa morte, talvez? – riu e dedilhou as cordas mais uma vez.
[...]
− Bixano! – gritou Raijin.
Bixano ronronava incomodado. Havia ouvido o barulho da cidade gemer para a morte.
− Estou ouvindo vozes de novo – comentou consigo mesmo.
− Sou eu, Raijin, idiota! Estou invisível!
− Raijin, é você! ...por que você está invisível?
− Longa história. Preciso que você abra a carruagem! Precisamos do garoto!
− Ahn!... O Meia-noite levou a chave... Não está comigo.
− É obvio que eu sei disso! Você precisa usar suas habilidades de ladino!
− Hum! Entendi. Seria melhor com a chave. Acho melhor que da próxima vez a gente faça uma cópia para cada um. Facilitaria muito caso ocorresse isso mais uma vez.
− Por que você está tão calmo? Não percebeu que a cidade inteira está morrendo???
− A gente enfrenta as lutas que consegue. Minha missão, por enquanto, é vigiar a carruagem.
− ... e nem isso você está fazendo que presta. O corpo do Mairon foi roubado!!!
Bixano olhou para a jaula do segundo vagão – Mas valia. Como é que pode? Tá até trancada... e só quem tem a chave é o Meia-noite...
− ABRA ISSO AQUI LOGO!
− Se acalme. Vou ver o que posso fazer – Bixano se abaixa e analisa a fechadura – Por sorte é uma fechadura simples... mas isso não quer dizer que será fácil abri-la.
− E o que você está esperando?
− Minhas ferramentas de ladinagem estão dentro da carruagem...
− Inútil!! – Raijin segurou-se na janela da carruagem e tenta ver Ahlex lá dentro – Ahlex! Precisamos que você encontre os equipamentos de ladino do Bixano.
− Como eles são? – o garoto responde.
− Como são os instrumentos, Bixano?
− Pequenos e finos.
− Isso não é uma descrição suficiente.
− Estão dentro de uma bolsinha.
− Como é essa bolsinha?
− Vermelha.
Raijin puxou pela paciência – é uma bolsinha vermelha com instrumentos pequenos e finos!
− Achei! – Ahlex respondeu após vasculhar brevemente os pertences de todos. Em seguida, passa o conteúdo pelas frestas da janela.
− Agora está nas suas mãos. Abra logo! – ralhou Raijin.
Bixano se abaixou mais uma vez, escolheu duas gazuas e pensou “eu deveria abrir trancas com mais frequência... sinto que me falta prática... mas não vou comentar isso agora”. Enfiou a primeira gazua na fechadura e sentiu a pequena agulha na extremidade tocar o primeiro gatilho.
“É um tanto simples. Sinto que vou conseguir fazer isso... mas porque você faria isso? Depois de todo trabalho que foi arrastar aquele corpo por toda cidade? Eu deveria ser um mero observador. Se eu abrir isso, vou acabar me envolvendo mais... talvez, você só precise ganhar mais tempo. Você não odeia quando esse rato lhe dá ordens? Confesso que é um pouco atrativo vê-lo com raiva. Você deveria quebrar sua gazua agora mesmo! Não conseguiria fazer isso nem que eu quisesse, pode não parecer, mas eu me importo com o que vai acontecer. Claro que se importa, não fosse assim, você não estaria arquitetando tudo...”
A gazua se quebra dentro da fechadura – Ihh... já tava difícil sem uma fechadura emperrada. Agora, vai ser complicado.
− SAIA DA FRENTE!!! – gritou Raijin faiscando eletricidade.
− Se eu fosse você, não faria isso...
O mago dispara um choque elétrico poderoso na tranca da porta... mas em nada afeta.
− Além da porta ser de madeira, o metal da fechadura é bronze. Esse tipo de aço funde, por sorte, não aconteceu – explicou Bixano – mas, pelo menos, agora posso ver você (a magia de invisibilidade dissipa na primeira ação ofensiva).
− PRECISO IR ATRÁS DA CHAVE COM MEIA-NOITE!!! – grita Raijin desesperado – VOCÊ...
− ... fica aqui e vigia a carroça? – completou Bixano.
Raijin assentiu e partiu novamente para dentro da cidade.
[...]
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