Rumo à Libertação de Valkaria

 

 


Sua mão macia deslizava pelo mármore da sacada. Nenhuma rachadura, nenhuma falha. Nenhuma imperfeição, por mínima que fosse. A mesma exatidão poderia ser encontrada em cada parede, aposento ou objeto naquele palácio. A mesma simetria implacável.

E não apenas no palácio, mas também no mundo à volta. Ao longe, uma cadeia de montanhas exibia picos com a mesma altura, a intervalos iguais. No céu de azul uniforme, nuvens idênticas corriam em velocidade constante e formações rígidas. Rios de margens retas e curvas exatas cortavam planícies de formas geométricas. Mesmo as árvores e suas folhas cresciam seguindo padrões rigorosos, exato.

Contra o cenário correto de Ordine, sua forma esbelta e seminua parecia ainda mais deslocada, mais imperfeita. Espirais lilases dançando sem rumo sobre a pele rosada, imitando o movimento dos cabelos de mesma cor. Mesmo absolutamente imóvel, mesmo observando a paisagem serena, ela parecia inquieta.

Khalmyr nunca entendeu o que a fazia tão linda. Claro, as deusas sempre são belas, são a perfeição – e perfeição, ele bem sabia, é o objetivo final de todas as coisas. Glórienn era a perfeição entre os elfos. Wynna era a perfeição entre os gênios e fadas. Alihanna entre os seres da natureza, e Tenebra entre suas criaturas da noite. Todas perfeitas. Todas belas.

Como alguém podia ser bela por sua imperfeição? Por suas falhas? Seus defeitos?

Como sua raça eleita poderia desejar alcançá-la, se não havia um padrão a alcançar? Como seguir as regras de alguém, se não há regras a seguir? Tal anarquia, em uma criatura supostamente igual a ele, perturbava Khalmyr profundamente.

Mas lá estava ela. Nunca a mesma, mas sempre ela. Não o caos mutante e insuportável de Nimb, mas ainda assim diferente a cada olhar, a cada momento.

O deus da justiça chegou mais perto, sua armadura exalando música metálica ao mover-se. Cruzou os braços. De todos no Panteão, era o único que parecia mais gentil de braços cruzados.

– Você sabia que seria apanhada. Sabia que seria castigada.

– Eu sabia que isso poderia acontecer – Valkaria respondeu, sem tirar os olhos da paisagem.

 - Achou que poderia conseguir? Achou que vocês três tomariam o Panteão?

– Havia uma chance.

– Aqui não há “chances” – grunhiu Khalmyr, com evidente desprezo pela palavra.

– Ah, perdão. Vivo esquecendo.

– Ela virou-se e se sentou na murada. Fitou o irmão deus com olhos que mudavam constantemente de cor.

– Como é estar sempre certo? – disse, em tom de acusação – Jamais ter dúvidas sobre o que deseja? Jamais chorar por um erro que cometeu ou nunca lamentar algo que não fez? Como consegue?

– Você gostaria de ser como eu? Por isso tentou usurpar a minha liderança?

– Não! – ela gritou, então acrescentou insegura – Não é nada disso…

– Então, por quê?

– Silêncio. Uma brisa de temperatura constante soprou. Valkaria não sentiu frio, mas mesmo assim segurou os próprios ombros.

– Você conhece a história do sapo e o escorpião?

Khalmyr conhecia. Mas deixou a deusa falar assim mesmo.

– O escorpião queria atravessar o rio Pediu ao sapo para fazer a travessia em suas costas. O sapo tinha medo de ser picado, mas pensou: se ele me matar, vou afundar e ele morrerá também. Certo de que não seria atacado, o sapo concordou.

“Então, no meio do caminho, o escorpião picou o sapo – Por quê!? – ele perguntou, enquanto o veneno agia e ele morria – agora vamos os dois morrer! Porque fez isso?

“E o escorpião respondeu: porque é a minha natureza.”

Khalmyr não precisa da parábola para entender. Ela era a deusa da ambição. A deusa de uma força, uma emoção, que impele todo ser senciente a alcançar o inalcançável. Uma qualidade que, se nem sempre pode ser admirada, deve entretanto ser respeitada. Talvez tanto quando a ordem, o bem e a vida.

Valkaria não seria verdadeiramente feliz. Ela sempre estaria em busca de algo que não tinha. Ou pior, de algo que não poderia ter. Como agora.

– Entendo que você seja assim – ele disse, em seu tom sempre grave – Teria acontecido cedo ou tarde. Ambos sabíamos.

“Mas e quanto a eles?”

Khalmyr apontou com o olhar, de uma forma que apenas deuses podem, para além dos limites de seu reino. Para o Plano Material, onde estava Arton. Para as vastas nações que prosperavam e guerreavam no continente sul, ainda populoso e civilizado naquela época.

– Por que fazê-lo assim? Por que precisam passar pela angústia, pelo mesmo martírio?

– Olhe para eles, Khalmyr – ela disse quase ofegante, soltando os braços, os olhos cheios de orgulho – São indomáveis. Conquistadores. Invencíveis.

– As crias de Megalokk também era. Tivemos que contê-las.

– Não creio! – a deusa vociferou, em tom de revolta – Como pode compará-los a monstros? Não acredito que não consiga ver a diferença!

– Ah, mas eu vejo a diferença.

E desta vez Valkaria ficou surpresa, pois havia compaixão na voz de Khalmyr.

– Eles não são maus. Não são cruéis. Eles temem o desconhecido, mas mesmo assim o enfrentam. Eles aprendem com seus erros, mas não cessam de cometê-los. Contagiam os outros com sua energia. Têm vidas curtas, mas intensas. Não importa o que aconteça, nunca deixam de ser eles mesmos – mesmo sem saber quem são eles mesmos. Pois não existe humano perfeito.

“Incrível. Uma raça que nunca será perfeita, mas mesmo assim nunca desiste de lutar. Admiráveis, esses humanos. De todas, Valkaria, não pensei que seria você a mãe da raça dominante. Mas agora parece tão lógico…”

– Você… os admira? – sussurrou ela, incrédula – Eu não fazia ideia…

– Eu os admiro, sim. Mas também lamento por eles.

“Você os fez à sua imagem. São eternos descontentes. Mesmo com a conquista do mundo, não vão descansar. Mesmo com a soberania sobre as outras raças, não vão parar. E nunca, nunca vão encontrar a felicidade verdadeira. Nunca vão conhecer a realização. Sua jornada nunca terá fim.

– Lin Wu costuma dizer que o importante não é o destino, mas sim a jornada – ela disse, orgulhosa como o deus samurai também acolheu os humanos como seus eleitos, e fez deles um povo de honra.

– Justamente! Uma jornada de desejos irrealizados, de anseios nunca satisfeitos. Não acha isso cruel? Fazer com que os mortais sofram como você sofre?

Valkaria sorriu suave, sentindo o peito aquecido. Por alguma razão, era confortador saber que Khalmur não tinha todas as respostas. Ele não entendia todas as coisas.

– É assim que você me vê? Acha que estou sempre infeliz? Que sou algum tipo de eterna amaldiçoada?

A deusa tocou o rosto rígido de Khalmyr, sentindo uma estranha e inadequada piedade. Nem parecia ser ela prestes a receber o castigo divino.

– Seus dois parceiros serão afastados do panteão para sempre – ele disse, como se lendo a mente de Valkaria – outros dois logo vão ascender para tomar seus lugares. Mas você não terá o mesmo fim.

– Não…? – espantou-se outra vez a deusa.

– Os humanos não merecem pagar pelo crime de sua criadora. Eles já sofrem o bastante, não serei eu a impingir-lhes mais tristeza. No entanto, deve ainda haver castigo.

“Você diz que os humanos são movidos pelo desejo. São movimentos pela busca, pela jornada. Pois que eles tenha uma busca. Um desafio. E quando esse desafio for vencido, você estará livre para retornar.”

De alguma forma, naquele momento, cada ser humano em Arton podia sentir um estranho entusiasmo enquanto Khalmyr explicava as regras e Valkaria ouvia com excitação crescente.

– Você será transformada em pedra. Aprisionada na forma de uma grande estátua, em meio ao desolado continente norte. No coração do colosso, haverá um labirinto. O mais perigoso labirinto jamais pisado por mortais. Cada membro do panteão – incluindo você e eu – contribuirá com seus próprios desafios.

Havia ainda uma série de outras regras, como o fato de que Valkaria não seria mais reconhecida ou lembrada em áreas distantes da estátua; seus clérigos teriam seus poderes reduzidos; e também o próprio segredo do desafio, conhecido apenas pelo sumo-sacerdote da deusa. Mas nada daquilo importava. Quando maiores as dificuldade, quanto mais obstáculos Khalmyr apresentava, mais a deusa brilhava de emoção.

– Tem certeza de que entendeu? – o deus da justiça sabia não ser correta uma reação tão feliz diante do que estava por vir.

– Sim! Claro que sim! Você está colocando meu destino… minha vida… nas mãos deles!

– Não está preocupada?

– Como poderia? Como, se agora tenho a certeza total de que serei salva?

– Como pode ter essa certeza?

– Porque confio neles! Foram feitos assim. Feitos para nunca desistir. Feitos para superar qualquer coisa, não importa quão difícil seja.

– Levará muito tempo.

– Esperarei. De joelhos. Clamando por sua ajuda.

– Em geral os devotos oram aos deuses pela salvação. O contrário não é comum.

– Eles não são um povo comum.

Sem mais nada dizer, Khalmyr sacou a espada Rhumnam. Valkaria recuou, assustada: mesmo com a confiança que tinha na própria salvação, o castigo não era fácil de enfrentar.

A deusa chorou. Suas lágrimas caíram em diversos pontos de Arton.

– Olhará por eles até minha volta? – pediu.

– Sim. Tem minha palavra.

– Então, estou pronta.

Deu as costas a Khalmyr, pousando as mãos trêmulas na sacada e esperou o golpe. A espada riscou no ar um arco perfeito de luz, mas parou no meio do caminho. Khalmyr sentiu que a deusa condenada ainda tinha algo a dizer.

– Haverá, sim, um fim para a jornada.

“Os outros deuses querem a adoração e adoração de seus povos. Querem que seus devotos sejam iguais a eles. Mas eu, Khalmyr, não quero que os humanos se ajoelhem para mim. Não quero que sejam iguais a mim.”

“Quero que sejam MELHORES que eu.”

“Melhores que NÓS.”

E nesse instante, fitando seu carrasco com o rabo dos olhos, acrescentou:

– Eu criei os humanos para que superem os deuses.

A espada terminou sua jornada.

Mas a jornada humana apenas começava…

 

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