As espirais do destino

 Os heróis ainda podiam ouvir o trovejante barulho das estruturas da antiga Fortaleza de Imrador ruir. Tudo devorado pelo espaço, mastigado por um buraco negro faminto, um salto para outros mundos.

[...]

Helena acabara de acordar. Pó e destroços ainda caíam. Ela havia sido cuspida pela terra. Seu rosto coberto de sujeira vandalizava sua tez alva, mal conseguia ver as marcas violetas dos laços de Valkaria que circundavam sua pele. Analisou os arredores, “o céu está desabando”, pensou. Trôpega e afligida por dolorosas tosses, marca da poluição do local, ela caminhou em busca de uma centelha de luz não-cinzenta.

Alcançou esta um minuto depois, usando as ruínas como impulso para dar os passos adiante. Vislumbrou um céu azul intocado. Os trovões não vinham de uma tempestade, mas sim do alto das ruínas de Imrador, “como vim parar aqui embaixo?”. As memórias martelavam sua consciência, estava se lembrando, na verdade, ainda podia sentir os dedos de Suzanna direcionando seu rosto de visão turva para assistir o fogo devorando a carne de Mairon, tornando o metal de sua armadura e a pele um só. O cheiro era insuportável. “Eu estava lá em cima”, olhou os arredores, “quanto tempo se passou?”.

Um som abafado veio à sua esquerda. Ela o seguiu, retornando para dentro da nuvem de poeira que aos poucos cessava. “São risadas...”, ela identificou, por mais estranho que fosse. Precisou abrir passagem entre duas colunas soterradas e lá encontrou o sujeito que havia conhecido, talvez, na noite anterior. Por alguma razão ele gargalhava, levando as mãos ao estômago de tanta dor. Ela mal se lembrava do nome dele, mas decidiu se aproximar. Antes de conseguir fazer isso, foi interrompida:

 — A culpa é sua! — uma voz rancorosa ergueu-se. Era Raijin, o mago hengeyokai rato, este um conhecido de muito mais tempo — viemos aqui em busca de vossa senhoria e agora Mairon está morto!

A condenação pegou Helena de surpresa.

— Eu tentei avisar de sua imprudência, mas todos parecem reconhecer em você algo que não é!

Helena não conseguia esconder sua indignação ao julgamento na costumeira austeridade que esboçava para a maioria... isso não iria funcionar contra o mago. Eles eram extremos. Ela é impulsividade e ação, ele é calma e planejamento. Ela acredita na magia vinda dos deuses, ele na magia que contrapõe a existência desses. Ele confia na própria inteligência para sobreviver e ela acredita ser dotada da sabedoria que lhe impunha as decisões que realmente valem a pena arriscar.

Para Raijin, Helena é uma jovem imprudente e egoísta. Para Helena, Raijin é um velho indisposto e covarde.  

Seja como fosse, não haveria vitoriosos naquela discussão:

— Eu precisei dar esse primeiro passo — ela explicou — indo adiante ou não, meu destino me traria à resultados. Que seja este, então... em Arton, a morte não é o final de tudo.

— Resultados? — indagou o rato enraivecido — você não estava nem aí para ele. Desde o ocorrido nas Montanhas de Teldiskan, você o tratava como um vassalo cujo destino era estar com você... agora ele morreu e você só tem a me dizer que era inevitável!?

— Eu dei à Mairon o esforço e a simpatia que me foi possibilitada por ele. Ele decidiu estar aqui, assim como você decidiu o mesmo, pelas mesmas razões ou outras, você está nessas ruínas junto a mim e...

Um corpo tombou à direita e chamou atenção de Raijin e Helena. A gargalhada do louco encerrou.

Bixano, o felino que vez em quando era notada a presença, massageava as têmporas e pareceu ficar tão surpreendido quanto o restante quando foi visto:

— Aí, pessoal... aconteceu uma coisa muito louca... Eu tinha uma máscara e agora não tenho mais... como é que pode?

[...]

Não havia outro lugar para ir a não ser o Acampamento dos Legionários. Ali, os heróis se juntaram à Jeremias, o cocheiro contratado pelo grupo há algum tempo. Jeremias cuidava dos cavalos da carruagem e lamentava a ida de Mairon em silêncio.

Helena verificava os próprios equipamentos que havia recuperado no episódio das ruínas de Imrador. Raijin folheava seu grimório descontente com o que ele acreditava ser a inconstante existência de magias plenamente eficazes que tinha em suas anotações. Bixano tentava esquecer os ocorridos puxando um trago.

... e Meia-noite, o inquisidor que há pouco havia se lançado na jornada daquele grupo era um misto de blefe (não queria ser amargamente transparente, mas a verdade é que o guerreiro que ele conhecera há pouco e que mais há pouco ainda havia morrido, não lhe fedia, nem bem cheirava) e contentamento por ter se enviesado numa situação que lhe trouxera à sua caça (Delilah, a pactuante) e ao mesmo tempo lhe deixara imerso até o pescoço com a história das lágrimas de Valkaria. Segurava o riso para não gargalhar. Ainda estava afetado pela fagulha de insanidade que havia brotado em sua cabeça no final daquele dia.

— Aí, o que tá rolando, ô da pistola? Tá preocupado? Eu tô também, perdi minha máscara... e um quilo de erva-de-gato... — Bixano invadiu os pensamentos do inquisidor.

— Preciso me acostumar com esse novo “eu”. Tenho a convicção do que aconteceu comigo. Chama-se “salto para Al-Gazaha”, o mundo de Nimb. Pode demorar um pouco. Às vezes tenho a impressão de ouvir a minha própria voz ressoar como um eco na escuridão. Alucinações, talvez...

Os dois ficaram calados por um minuto e Bixano sentiu que deveria falar alguma coisa.

— Meu tio também tinha isso...

[...]

Mestre Beocca, arquivista e conselheiro de Lady Shivara

 

— Eu bem previra que minhas magias de adivinhação não iriam me decepcionar – exclamou um halfling enquanto se aproximava dos heróis, sua voz era aguda e polida — o senhor perto da fogueira deve ser Raijin, o mago que recebeu as magias de Raven Blackmoon, oh, então, este felino deve ser o pitoresco Bixano hahaha! Você não é mesmo do tipo que diz “Drogas, nem morto!”... e você, bem você, deve ser Mairon — falou se referindo à Meia-noite — parece que finalmente tenho uma descrição de seu rosto, haviam me falado que por nada neste mundo tiravas o elmo!

— Não me chamo Mairon. Sou Meia-noite, da União Púrpura, inquisidor e exterminador de demônios e curiosos...

— Oh, eu sinto muito, sinto muito mesmo! Se tu não és Mairon, onde ele se encontra agora?

— Quem pergunta? — se adiantou Helena.

— Oh, mil perdões, minhas mais humildes desculpas. Minha educação aqui passou longe. Permita me apresentar: Eu sou Mestre Beocca, um arquivista e também conselheiro de Lady Shivara Sharpblade!

Todos ali haviam ouvido falar de Shivara pelo menos uma vez. A primeira investida vitoriosa contra uma área de Tormenta foi liderada pela rainha de Trebuck e a maioria ali sabia que ela estava no acampamento dos legionários participando da estratégia contra a Aliança Negra.

— ... e você deve ser Helena, a última lágrima de Valkaria. Interessante como vocês sempre parecem jovens! — Beocca continuou.

— Você diz ser um conselheiro de Lady Shivara? — os olhos de Helena se inundaram de contentamento. Não conseguia disfarçar a admiração. Havia lido sobre a heroína desde criança. A igreja de Valkaria cultuava seu nome e Marion, sua mestra, orgulhava-se de ver como campeã uma mulher mais destemida e competente que qualquer homem. Os feitos de Shivara haviam incendiado o coração de muitas heroínas pelo mundo todo e Helena não era uma exceção.

— De fato. A senhora Shivara Sharpblade exige o comparecimento de vossas senhorias à sua base neste acampamento.

Todos do grupo se entreolharam. Aquilo era algo grande.

[...]

A cabana de Lady Shivara não era o que se podia esperar de um estabelecimento (mesmo que passageiro) de uma rainha. Era cercada por um grupo exótico de aventureiros, talvez amigos mais próximos, um reflexo de suas antigas jornadas heróicas.

Mestre Beocca liderava os visitantes que agora mais pareciam com estrangeiros curiosos. A lona de couro que era a entrada da cabana foi retesada afim de mostrar o interior do aposento monótono da rainha. O que de mais valoroso podia ser visto era uma mesa pesada de pinhos e pinos pesados de estanho sobrepostos num grande mapa de Tyrondir. Ali, Shivara demarcava áreas oportunistas de suas estratégias de guerra.

Lady Shivara Sharpblade

 

A rainha estava de pé, apoiando o peso do corpo nos punhos fechados. Ela imediatamente desviou seus olhos do mapa e estes se encontraram com o grupo de heróis. Helena conteve a emoção, Raijin analisou curioso os arredores, Bixano examinou a lona e o cobertor que serviam de cama para a rainha (e deduziu que seria um ótimo lugar para soneca), Meia-noite encantou-se com a forte presença feminina e Heitor manteve-se galante como um paladino de Khalmyr.

— Aqui estão, vossa alteza! — apresentou Mestre Beocca.

Havia mais alguém lá. Uma presença quase tão forte quanto a da própria Shivara. A pele morena escura e os cabelos púrpura denunciavam sua existência. “Thallia”, balbuciou involuntariamente Helena. O grupo estava diante da primeira lágrima de Valkaria e da rainha vitoriosa de Trebuck.

[...]

Thallia Drewmore, a primeira lágrima de Valkaria
 

— ... algumas decisões precisam ser feitas e eu não tinha muito tempo para pensar. Nunca tive a pretensão de me aliar ao Cárcere, mas sim de conhecer o que eles conheciam. Consigo sentir que o vínculo com meu alter-ego é importante e, naquele momento, Suzannah era o único indício que me levava a alguma chance de fazer isso. Se eu seguisse outras diretrizes, como a dos valorosos paladinos de Khalmyr, minha decisão poderia ser outra, mas a ambição que governa minha fé me fez crer que priorizar esse vínculo, talvez me desse forças para coagir aquele grupo...

Raijin manteve seus argumentos calados, mas quem o conhecia, sabia que um forte senso de justiça inflamava sua garganta naquele minuto. Thallia e Lady Shivara ouviam a versão dos fatos de Helena. A própria primeira lágrima havia indagado a clériga sobre isto.

— Algo me soa estranho na sua versão, Helena — complementou a rainha — você afirma que Suzannah tinha a pretensão de ajudar-lhe com o vínculo de seu alter-ego, porém, apenas lhe lançou contra uma barreira de vidro às cegas. Ouvi o bastante de Thallia para entender que o vínculo não se dá início assim...

Helena não tinha palavras, não entendia o argumento. Desejou ter palavras certeiras para responder a uma rainha, mas mergulhou na confusão de seus pensamentos. Thallia notou isso e intrometeu-se:

— Qual o nome de seu alter-ego, Helena?

— Eu... eu...não sei. Quero dizer, ela nunca falou para mim!

— Ela é parte sua. Você deve nomeá-la, esta é a primeira coisa que deve ser feita durante o vínculo. Anielka é o nome da minha, veio a mim em sonhos. É um nome importante para mim. Seria o nome da minha filha, caso... — encerrou o assunto.

— Como... como eu poderia saber? Eu acho... acho que perguntei a ela... e ela não me respondeu. Por que ela não responderia? Se ela queria um nome, por que não foi direta?

— Cada alter-ego tem seus próprios interesses e tendências. Estes costumam ser o “outro lado da corda” da sua personalidade. Saber lidar com essa oposição é uma das chaves para concluir o vínculo.

— O que ainda não foi respondido é, por que Suzzanah não simplesmente simplificou isto para você — concluiu a rainha.

— Com a sua licença, vossa majestade — Meia-Noite apresentou-se cortês — eu ingressei a este grupo recentemente. O destino quis assim. Há muito rastreio um mal nascido em minhas terras e este me trouxe até este reino onde vi uma brutalidade acontecer — o inquisidor retirou um emblema de Valkaria dos bolsos e mostrou aos interessados — sabem a quem isto pertence?

Thallia reconheceu quase de imediato, “o emblema de Arya”, sussurrou e havia peso em suas palavras.

— Temo que isto pertenceu a uma das lágrimas de Valkaria, entretanto, ainda tenho pouco conhecimento do que vocês são. Vi, das sombras, o grupo intitulado “O Cárcere” executar aquela que isto possuía.

Aquilo chamou a atenção de Lady Shivara e era exatamente o que Meia-Noite queria:

— Eu vim de muito longe buscando uma inimiga. Seu nome é Delilah, ela é uma das filhas da família Maleficent, conhecida na União Púrpura por barganhar com demônios e diabos ancestrais. Acredito que “a coisa” que Suzannah criou um vínculo, não se trata de seu alter-ego e sim um dos extraplanares Maleficent.

— Está supondo que o verdadeiro mal está sendo arquitetado por outra pessoa e Suzannah é uma vítima? — indagou a rainha.

Aquela suposição encheu o coração de Helena de esperanças. Ainda havia algo em seu peito afirmando que Suzannah, como clériga de Valkaria, não poderia rebelar-se tão avidamente contra a própria deusa. Mesmo quando a irmã de fé abandonou o grupo no alto das ruínas de Imrador, Helena não pôde deixar de sentir uma conflitante sensação de empatia.

— Qual será meu próximo passo? — Helena pôs-se firme diante da rainha e da primeira lágrima — Vou sacrificar tudo que posso para forjar esse vínculo!

Raijin tinha Mairon em pensamento e sentiu a determinação de Helena para com a própria ambição falar mais alto. Decidira não tomar partido, nem respeitar uma próxima intenção de liderança.

[...]

O Acampamento dos Legionários agora era um formigueiro distante. Meia-Noite, Raijin, Bixano e Heitor estavam na caravana manobrada por Jeremias. O caminho seria longo, para Namalkah, a terra dos cavalos em busca de um menino possuído. Helena havia ficado, seu caminho era outro, para as terras de Odisseia, onde sua deusa um dia vivera.

A jornada desses heróis há muito desenhava espirais.

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